terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A arquitetura, uma arte?


(A autora do blog quer deixar claro, antes de mais nada, que o texto a seguir não é de sua autoria)

A arquitetura é, talvez, a mais incompreendida das belas artes. Até o ponto em que muitas vezes, mesmo entre pessoas com sensibilidade estética, se encontra o prurido de relegá-la para o último lugar das suas preferências, muito atrás da pintura, da música e da literatura, que aparecem habitualmente nos pontos de honra. O fato é tão notório que aconselha aprofundar as causas. E a primeira coisa que se deve perguntar é se a arquitetura é propriamente uma arte. Porque pode ser que a raiz desse desapego esteja em algo tão simples como rever a sua inclusão entre as belas artes para considerá-la uma técnica.

“Só uma pequeníssima parte da arquitetura pertence ao domínio da arte: o túmulo e o monumento. Tudo o mais, que está a serviço de uma finalidade, deve ser excluído do reino da arte”. A anterior frase, por demais contundente, é de um grande arquiteto contemporâneo, Adolf Loos (1870-1933). E é particularmente interessante porque, ao mesmo tempo em que representa uma clara tomada de posição no tema que nos ocupa, inclui uma motivação. Seria, segundo Loos, esse caráter “utilitário” da arquitetura o que a desqualificaria como bela arte. O que não implica que a obra arquitetônica tenha forçosamente de carecer de beleza, mas que, mesmo quando a possui, o essencial não seria essa beleza, mas antes a sua adequação à finalidade com que foi feita: a sua utilidade, em suma. Assim, frente a esplêndida inutilidade de um quadro, de um poema ou de uma sinfonia, o edifício está submetido às exigências da sociedade que o financia e, para ela, é mais uma satisfação do que um desafio.

Ao aceitarmos esse ponto de vista de Loos, os arquitetos não seriam artistas no sentido estrito da palavra. Alguns, sem dúvida, seriam capazes de dotar de beleza as suas obras, como um engenheiro que desenha um barco ou um automóvel, porque em toda obra humana há uma aspiração à beleza; mas o critério de funcionalidade deveria primar sobre qualquer outro no momento de conceber sua tarefa. Dito em outras palavras, à arquitetura poderia aplicar-se o que Max Bense escreve acerca das criações da técnica: “Nenhuma forma técnica tem sentido próprio como coisa individual; não existe, funciona.” E isto, ao contrário das “verdadeiras” obras de arte, que são um universo em si mesmas, arrancado ao nosso pela obra do artista, como se arranca do bloco de mármore a figura desde sempre nele contida, que é o mais alto grau de sua realidade.

Acrescente-se que é certo que a arquitetura, mais do que qualquer outra das artes plásticas, tem estado secularmente a serviço do homem, não só para satisfazer as suas elementares necessidades de alojamento e de relação, mas também servindo a interesses bastardos. Milhares de homens sucumbiram para tornar realidade o desígnio do arquiteto que planejou a grande pirâmide de Kheops e, sobretudo, para que perdurasse a ordem social preconizada pelas classes dirigentes egípcias. Do mesmo modo que muitos milhares e milhares de homens sobrevivem hoje nos desumanos blocos dos subúrbios de cidades desenvolvidas como cancros no seio da sociedade contemporânea. Por acaso a música pode alguma vez privar de liberdade um único homem, como os tristemente célebres chumbos venezianos ou a sinistra Torre de Londres? Ou foi alguma vez possível com pincéis derramar-se o sangue vermelho dos homens tal como nos altares de templos erigidos para a imolação de vítimas humanas? Mais de um belo edifício ostenta anda em suas gastas pedras inscrições que nos fazem evocar a dor que foi causa ou acompanhamento de sua construção. E aí estão em muitos casos as ruínas para demonstrar-nos que todo aquele esforço foi absolutamente inútil: os invioláveis túmulos violados; as fortalezas de torreões orgulhosos desfeitos; os templos de deuses ainda mais perecíveis do que os pobres mortais que lhes renderam culto.

É compreensível, pois, que perante isto haja quem sinta que ante a obra arquitetônica a sensação de encontrar-se frente a uma realidade menos transcendente, muito mais mundana e material do que aquela que pintores, escultores e músicos põem ao nosso alcance. É uma realidade, para cúmulo, demasiado marcada pelo seu momento histórico, que em grande parte nos é alheio, já que dificilmente podemos vê-la de dentro, isto é, a partir da situação para que foi feita. O próprio arquiteto pode ter, em certos casos, uma sensação análoga, desde o momento em que a realização de seu projeto deixa de depender dele e se vê midiatizada por fatores alheios à criação: imposições daqueles para quem se faz a obra, substituições de materiais e – em épocas passadas sobretudo – larga duração dos trabalhos, que o arquiteto não chega a ver terminados em vida e que, com o decorrer do tempo, se adaptaram a diferentes gostos ou necessidades. Assim, frente à individualidade perfeita da obra de arte, que existe como um modo inteligível desde o momento de sua criação, sem admitir ou requerer retoques ou desenvolvimentos posteriores, a obra arquitetônica, em geral, nos é apresentada condicionada, temporalizada, tradução nem sempre fiel da idéia do artista. Neste aspecto parece-se com a música, com o inconveniente de que para ela não há mais do que uma única interpretação irrepetível, e talvez malograda.

Ma talvez não seja a obra arquitetônica – aquilo que é efetivamente realizado – o que entra no domínio da arte, mas apenas seu projeto, imaginado pelo arquiteto... Porém, em tal caso, a arquitetura não seria autêntica obra de arte, não seria, na realidade, nada; quando muito, um castelo no ar. E não vale a pena referir-se a uma planta que, além de não ter existido em infinidade de ocasiões, nos obrigaria a ver a arquitetura como um gênero especializado de desenho.

Se a consideração do caráter utilitário da obra arquitetônica levava Loos a negar-lhe – salvo nos casos do túmulo e do monumento – a possibilidade de ser obra de arte, outro grande arquiteto contemporâneo, o francês Le Corbusier (1887-1965), tentava manter para ela esse caráter, investindo no essencial, no puramente plástico. O arquiteto, segundo ele, desenvolveria sua arte “reunindo volumes e formas debaixo da luz”. Luz e volumes; nenhuma referência ao útil, ao funcional, embora, como é lógico, esses volumes tivessem de ser viáveis desde o ponto de vista técnico, e corretos, isto é, adequados a um lugar, a uma época, a uma função. E esta precisão imprescindível faz com que as posições de Loos e de Le Corbusier não devam ser consideradas contraditórias, na medida em que o que as distingue é, basicamente, uma questão de ênfase.

Ora bem: a discussão sobre se a arquitetura deve ou não ser considerada como uma das belas artes e – em caso afirmativo – acerca da hierarquia dos valores que fundamentam a sua estética é, se bem se vê, irrelevante. Porque, infelizmente, as obras arquitetônicas aí estão; e são obras de arte. Afirmação que não se faz a partir de pressupostos teóricos, mas de um sentir reforçado por gerações de homens.

O que acabamos de escrever pode parecer um paradoxo se nos limitarmos a opor esta espécie de reconhecimento universal ao fato inicialmente apontado, de que a arquitetura não é comumente valorizada como as outras belas artes. Então, em que ficamos? Não é verdade que a arquitetura nos é apresentada por vezes como uma irmã pobre das demais artes, que mal recordamos os nomes dos grandes arquitetos que existiram ao longo da história, que suas obras não nos “impressionam” da mesma forma que um belo quadro ou uma bela estátua ou que, quando tal acontece, é por motivos não estritamente estéticos? Não é verdade que nas histórias da arquitetura se citam como fundamentais obras cujo mérito não é a sua beleza, mas antes a inovação técnica que supuseram no seu tempo, as dificuldades vencidas em sua construção, suas dimensões, etc?

Para conferir valor à arquitetura tem-se dito muitas vezes que sua obra reúne as de outras belas artes, singularmente escultura e pintura: que o edifício – ou o conjunto urbanístico – é o enquadramento próprio de estátuas, de relevos e quadros que hoje temos estupidamente encerrados em museus... No entanto, isto não é suficiente para acreditar a condição de obra de arte do edifício em si.

A resposta a todas estas questões que vimos levantando é simples. A arquitetura é arte, certamente; mas também é muito mais do que arte. É obra de um artista, mas, ao mesmo tempo, é obra e testemunho de uma sociedade. É criação intemporal, mas só inteligível num tempo concreto e, em grande parte, como desafio às suas leis. É, em cada saco, uma obra singular; porém, ao mesmo tempo, resume séculos e séculos de conquistas técnicas, que o arquiteto emprega já não como conquistas, mas como uma linguagem própria; por isso, neste caso, a técnica não pode desligar-se da estética. E se o contemplador da obra arquitetônica não sente perante ela uma emoção estética semelhante à que nele suscita a contemplação de uma estátua ou de um quadro é porque, neste caso, a obra se lhe impõe: faz-lhe sentir a sua realidade com uma força tal que, por vezes, lhe anula ou mediatiza o sentimento propriamente estético. Porque, como gozar da beleza formal das pirâmides, sem sentir de cimo delas, não quarenta séculos, mas a história inteira da humanidade nos contempla? Como pisar o Coliseu de Roma sem evocar os espetáculos sangrentos que se realizaram, naturalmente, sobre suas escavadas entranhas? Como admirar as belíssimas ruínas da Acrópole sem sentir-se de algum modo ateniense?

Através de suas obras arquitetônicas, o homem dominou o mundo: transformou-o, de simples moldura de sua vida, em realidade humana. Com certeza que é eloqüente o legado das restantes artes. Mas as palavras, mesmo as que nos chegam desde o mais remoto passado, mesmo as “mais perenes que o bronze”, não tem a expressividade das pedras. É como se estas, mesmo reduzidas a puras ruínas, conservassem intactas a mensagem dos séculos. São como a confirmação palpável, material de que existiram realmente aquelas pessoas cuja história, cuja literatura, cuja arte, enfim, chegariam até nós de forma fragmentária. E assim se compreende o entusiasmo de Schliemann ao encontrar restos arqueológicos que confirmavam a realidade histórica dos poemas homéricos.

Não é difícil, pois, dissociar a obra arquitetônica daqueles que foram seus construtores. Torna-se difícil isolá-la do contexto de seu tempo para gozar de sua pura beleza. Mas isto não é limitação, é antes uma riqueza incomparável. É, talvez, uma forma mais plena de aproximação à obra de arte.

Mas a inversa também é verdadeira. Sem um mínimo de bagagem cultural, sem uns conhecimentos mínimos da história dos que levantaram o edifício ou o monumento, sentimo-nos em certo modo ultrapassados, alheios a ele. Um quadro ou uma escultura, não necessitam grandes explicações; ainda assim, exigem-nas. Mas a realidade de uma obra arquitetônica – de que em muitas ocasiões só chegamos a conhecer a fachada – apresenta-se-nos gravemente incompleta se não formos capazes de situá-la no seu contexto próprio. E isto é válido também para os aspectos mais técnicos. Porque frente a um edifício, encontramo-nos, por vezes, como num bosque do qual desconhecemos os nomes das árvores: se são azinheiras, castanheiros ou choupos... E isso impede-nos de formarmos uma idéia clara do que distingue uns edifícios de outros.

A arquitetura, uma arte? Uma arte, sim. A mais nobre das belas artes. Mas também a mais complexa, porque os arquitetos não trabalharam com elementos simples, como cores, sons ou formas. Nem apenas com volumes e luz. Mas com a natureza inteira, com a vida, com as crenças e com o espírito dos homens.

História Geral da Arte - Arquitetura I (Ediciones del Prado, 1995)